Linguagem humana existe há pelo menos 135 mil anos, diz estudo

Estudo que une linguística, genética e arqueologia propõe que essa adaptação biológica comum às populações permitiu a forma humana de pensar e produzir cultura

AgênciaSP


A origem da linguagem é ainda tema controverso nas ciências, com antropólogos, biólogos evolucionistas, psicólogos, arqueólogos e linguistas sugerindo hipóteses variadas sobre o início dessa característica humana fundamental. Sem evidências explícitas ou registro, pesquisadores se desdobram para encontrar pistas que, pouco a pouco, pavimentam o caminho para uma resposta mais clara. Uma pesquisa publicada em março na revista científica Frontiers in Psychology enriqueceu a discussão, ao concluir que a linguagem – que não tem o mesmo significado de língua falada – já era uma capacidade humana há pelo menos 135 mil anos. A estimativa anterior ficava em 125 mil anos atrás.

A afirmação depende do pressuposto de que o desenvolvimento da linguagem é uma adaptação biológica única e comum a todas as populações humanas conhecidas, portanto a presença de linguagem precisaria ser anterior à primeira emigração da espécie Homo sapiens para fora da África, cerca de 120 mil anos atrás. Seguindo essa lógica, encontrar o momento em que a espécie deixou de ser um grupo único e indiviso significa encontrar um marco mínimo para seu surgimento.

“Não estamos apontando uma data exata, pode ser que a linguagem tenha surgido antes ainda desse momento', explica a bióloga Mercedes Okumura, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), uma das autoras do artigo. Para ela, a vantagem de identificar um limite inferior de tempo é poder guiar inferências futuras.

Muitos linguistas defendem que, com a análise das similaridades entre as línguas, é possível demonstrar que todas são aparentadas e, possivelmente, descendem de um grupo ancestral na África, cujos representantes modernos seriam os povos Khoisan. Paralelamente, estudos do genoma humano também apontam para o ancestral direto desses povos como a provável linhagem a ter sofrido a primeira divergência, a partir da qual Homo sapiens se alastrou a regiões geográficas mais distantes, passando a capacidade linguística para gerações seguintes.

LEIA TAMBÉM: Linhagem do sorotipo 3 da dengue entrou no Brasil vinda do Caribe e Costa Rica, mostra Butantan

“O que fizemos foi deixar mais precisa a estimativa para a primeira divisão populacional, ao considerar análises que até alguns anos atrás não estavam disponíveis', conta Okumura. O trabalho envolveu a compilação de 15 estudos genéticos publicados nos últimos 18 anos, incluindo análises de cromossomo Y, DNA mitocondrial e genoma inteiro.

Linguagem não é o mesmo que língua ou idioma, e não necessariamente teve sempre a ver com comunicação. Para muitas vertentes científicas, a linguagem é uma decorrência da evolução, que de alguma forma modificou o cérebro da espécie. “Todo indivíduo humano nasce com uma capacidade intrínseca que serve de base para desenvolver o conhecimento linguístico e é, portanto, uma forma de expressão genética', esclarece o linguista Vitor Nóbrega, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, coautor do artigo.

“As línguas, sim, podem ser aprendidas ao longo da vida. Cada uma delas é uma possível forma de arranjo que expressa essa base cognitiva comum a todos', afirma Nóbrega, que ressalta que a capacidade linguística pode se manifestar em uma vasta gama de gestos, imagens, sons e combinações que gerem significado e funcionem como peças da comunicação.

A comunicação, então, talvez não seja a primeira função à qual o surgimento da linguagem se prestou. Evidências de expressão cultural e do chamado “pensamento simbólico' começam a aparecer nos achados arqueológicos para as populações humanas que viveram há cerca de 100 mil anos. Esses registros incluem pinturas rupestres, adornos, resquícios de rituais funerários, artesanato ou outros que refletem um comportamento complexo, ancorado em uma forma de processar, chegando a transmitir informações por meio de símbolos e significados.

“Já que línguas não fossilizam, dependemos também de evidências indiretas que não estão na alçada da linguagem', comenta Nóbrega. “Nesse caso, podemos olhar para o registro arqueológico desconfiando que a presença de símbolos descobertos ali implique alguma expressão não só material, mas também linguística.' Para ele, é sintomático que, (relativamente) não muito após os 135 mil anos, se observe uma emergência de cultura material com rápida propagação.

O estudo propõe que, no intervalo de tempo entre a origem da capacidade e a produção de material simbólico, a linguagem tenha evoluído de uma adaptação inicialmente apenas cognitiva – uma forma de organização de pensamentos e de estímulos do meio exterior – para um sistema comunicativo e de socialização. A adaptação mental teria sido o gatilho para o desenvolvimento de fatores de comunicação.

LEIA TAMBÉM: Grupo cria mel ‘sabor chocolate’ usando casca da amêndoa do cacau

“Se cultura material é prova, então dá para dizer que neandertais [Homo neanderthalensis], denisovanos [Homo longi] e possivelmente outros hominídeos também tinham desenvolvido linguagem, pois os registros arqueológicos trazem cada vez mais vestígios de ferramentas líticas e expressões artísticas que essas populações produziam, que podem ser associadas a um comportamento mediado por símbolos', comenta para Pesquisa FAPESP a belga Nathalie Gontier, filósofa de teorias evolutivas biológicas e linguísticas da Universidade do Porto, em Portugal.

“Mas aí era já linguagem, era uma protolinguagem ou era um sistema de comunicação primitivo?' Gontier propõe a pergunta como central para a ausência de consensos da comunidade científica. Ela mesma responde: “Tudo depende das definições de linguagem de cada disciplina ou linha de pesquisa; portanto, a questão permanece'.

O linguista Fernando Orphão de Carvalho, do setor de antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), analisa a história das populações humanas por intermédio de suas línguas e concorda que há uma forte dependência, para os avanços da área, da definição de linguagem que se escolhe. “Para cada definição de linguagem sendo usada, uma filogenia evolutiva distinta é gerada', diz, referindo-se às árvores genealógicas criadas a partir de características das espécies consideradas.

Carvalho também questiona a necessidade prévia da linguagem para que um artefato cultural seja produzido. “Seria importante termos mais estudos que mostrem a vinculação entre essas duas condições', pondera ele, que indica ainda a necessidade de explorar os mecanismos de aprendizado social da linguagem.

Nesse sentido, Gontier tem se dedicado a estudos evolutivos que levam em conta a existência de protolinguagem em primatas e outros animais. “Presume-se que protolinguagem seja uma forma intermediária entre o comportamento de primatas e a linguagem humana, e a forma como eu lido com as discordâncias atuais sobre diferenças entre linguagem e protolinguagem é olhando para o que chamamos de ‘composicionalidade’.'

O termo implica que a linguagem é composta por um somatório de comportamento associativo (por exemplo, a associação simbólica de gestos entre gorilas que significam “perigo' ou então “venha me fazer um cafuné') e estrutura, ou ordem hierárquica, na qual os significados são posicionados dentro de uma frase ou uma ação. “O próprio comportamento de caminhar ou comer em uma sequência determinada pode ser reflexo desse ordenamento cognitivo', afirma Gontier.  A linguagem, nessa visão, é mais do que comunicação.

Frequentemente, estudos com primatas, como o publicado sobre bonobos em abril na revista científica Science por uma equipe da Universidade de Zurique, na Suíça, destacam esses comportamentos. Os bonobos combinam chamados vocais, equivalentes a palavras, para elaborar novos significados – uma competência tida como exclusivamente humana até pouco tempo atrás. O artigo indica que bonobos poderiam compartilhar com a humanidade uma forma precursora da capacidade de combinar unidades de linguagem, herdada do ancestral comum de ambos há cerca de 7 milhões de anos.

“Não se trata de negar outras formas de comunicação entre animais, mas há diferença no nível de complexidade que observamos na linguagem humana, que é fruto de uma estruturação mental sofisticada e única, com origem biológica', diz Nóbrega, da USP. O linguista explica que, apesar das evidências esporádicas de atividades simbólicas de neandertais, é apenas na linhagem dos Homo sapiens (a partir de 100 mil anos atrás) que os registros arqueológicos surgem de forma sistemática, indício de que o comportamento foi exercitado de forma coerente por todas as populações da espécie e não apenas algumas.

Gontier conclui que não há muitos consensos sobre como a linguagem evolui. Onde pode haver um consenso é que cada vez mais evidências mostram o comportamento composicional em outros animais: seria possível, assim, que o pensamento seja ordenado mesmo sem língua ou comunicação.


Comentários